Rayane Aparecida Castro Silva[1]
RESUMO
Este trabalho tem o propósito de apresentar e discutir aspectos sociais e de gênero encontrados no filme Atlantique (2019). Nossa análise é voltada para as singularidades encontradas nas obras fílmicas e como elas podem ser utilizadas para o trabalho do historiador. O longa apontado retrata, pelos olhares de jovens senegalesas, a questão da imigração de moradores da região de Dakar (Senegal) para a Europa. Dessa maneira, propõe-se discutir aspectos que constituem o papel feminino, e também como a imigração é capaz de afetar as relações familiares.
Palavras-chaves: Senegal. Mulheres. Filme. Imigração.
INTRODUÇÃO
Este texto propõe encarar algumas questões sociais e de gênero encontradas no filme “Atlantique” (2019), da diretora e atriz francesa Mati Diop, essa que foi a primeira mulher negra a concorrer à Palma de Ouro, em 2019. A diretora é sobrinha do conhecido cineasta senegalês Djibril Diop Mambéty (Touki Bouki: A Viagem da Hiena - 1973). É importante ressaltar que nosso trabalho não tem o objetivo de esquadrinhar todos os elementos encontrados na obra, em razão da dimensão desse tema, mas de levantar questionamentos que fomentem as reflexões sobre o cinema africano.
Analisar um filme envolve também refletir sobre o lugar social ocupado por quem dirige a obra cinematográfica, tornando necessário ressaltar o lugar ocupado por Mati Diop, nascida na França, filha de uma francesa e um músico senegalês. Carrega em suas origens a cultura africana, as memórias de sua família e as particularidades de uma estrangeira. Uma mulher que mora na Europa, mas que tem facilidade em viajar para o Senegal, encarando o processo imigratório como causa de sofrimento. Esse filme foi selecionado por sua relevância ao discutir questões que permeiam a sociedade senegalesa, seja fazendo referências ao passado de Touki Bouki (1973) ou em seu próprio presente em Atlatique.
O enredo da obra é um híbrido entre romance e suspense. Em um subúrbio de Dakar (capital do Senegal), um grupo de trabalhadores da construção civil, sem receber seus salários há três meses, decidem partir rumo à Espanha em busca de uma vida melhor. Entre eles está o jovem Souleiman (Ibrahima Traore), amante de Ada (Mama Sane), a qual é comprometida com Omar (Babacar Sylla). Quando as notícias do naufrágio do barco chegam, situações sobrenaturais começam a acontecer pelas ruas da cidade. Uma sinopse que parece curta e simplista, mas que em seu enredo é capaz de revelar perspectivas essenciais para debates, seja em relação a condição feminina senegalesa e/ou as questões do processo imigratório.
É possível indagar ao filme de Mati Diop os seguintes elementos: como a mulher é tratada na sociedade senegalesa representada pelo filme? Qual o papel dessas mulheres assim que seus filhos/maridos/sobrinhos/irmão se lançam ao Atlântico em busca de uma vida melhor? A questão central do filme remete ao sujeito que fica, que deve seguir na incerteza da vida ou morte de seus familiares. Esse sujeito retratado no filme é o feminino, a mãe, a esposa, a namorada e a irmã.
DISCUSSÃO TEÓRICA
O filme Atlantique é uma produção franco-belga-senegalês, que foi adquirido pela provedora global de filmes e séries via streaming - Netflix. Trabalharemos com uma produção fílmica de um único país do continente africano – o Senegal e, por isso nossos olhares estarão voltados aos países francófonos (lugares onde o francês ainda é a língua oficial, mesmo após o processo de independência). Não podemos cair na ingenuidade de caracterizar todos os filmes produzidos em África de uma mesma maneira, considerando a dimensão do continente, mesmo que algumas características perpassem pela grande maioria das produções: a dificuldade de recursos financeiros locais. Esses filmes são financiados por agências estrangeiras, visto alguns casos de países que antes eram suas metrópoles, o que causa um compromisso a atender necessidades e interesses distintos. Um filme africano pode, por exemplo, ser financiado por cinco ou seis países. (ARMES: 2012)
A questão da imigração senegalesa é, sem dúvida, a fonte de inspiração da diretora. Dessa maneira, podemos nos perguntar: o que causou e ainda causa o intenso movimento imigratório do Senegal? O pesquisador João Carlos Tedesco (2017:237), faz o alerta para a importância de considerar essa movimentação como um evento histórico e analisá-lo como tal.
Através do processo de modernização durante a década de 1960-70, ocasionou-se então, o êxodo de trabalhadores rurais que não conseguiram se adaptar às mudanças tecnológicas agrícolas solicitados, entre elas, a implantação da monocultura de amendoim. Não podemos deixar de citar as questões econômicas externas, como a desvalorização do Franco CFA (moeda corrente usada em doze países africanos, anteriormente colônias francesas), o que encareceu consideravelmente as importações. Para além dos fatores econômicos, as mudanças climáticas dificultaram ainda mais a agricultura, seja pelas secas ou salinização das regiões costeiras. Dadas essas questões internas e externas de maneira resumida, a imigração senegalesa se intensificou durante a década de 1990, em um primeiro momento dentro do próprio continente africano, após para a América, em especial aos Estados Unidos e também para a Europa (França, Itália e Espanha) (TEDESCO: 2017).
Em Atlantique, podemos presenciar o contraste entre o urbano e o rural que é apresentado rapidamente. Após algumas cenas exibindo os canteiros de obras, em meio a modernidade dos futuros edifícios, o corte é dado para uma boiada que passa em frente a construção. A menção às cenas iniciais de Touki Bouki revela com sutileza o elemento rural, que ainda permanece ligada às memórias do Senegal, no entanto, logo os animais são substituídos pelo cenário empoeirado, os sons da construção e o clima seco. A trama se inicia durante o embate entre trabalhadores, que estavam há três meses sem receber seus salários, e os supervisores que não apresentavam soluções. É nesse momento que somos apresentados ao personagem Souleiman.
Após o conflito, os homens voltam para casa ainda sem receber. Temos a primeira cena que sugere o encontro de Souleiman com o Oceano Atlântico. Esse elemento será utilizado em diversas cenas durante o filme, seja diretamente com o rapaz ou após sua morte. Pode-se compreender o oceano como um personagem, um companheiro de viagem, um devorador de almas e corpos. Algo belo e ao mesmo tempo amaldiçoado. O Atlântico é a barreira que separa o homem de seus sonhos. Uma ferramenta abstrata e poética que a diretora utiliza para expressar a crueldade causada pela imigração.
Quando os jovens partem, aqueles que ficam são esquecidos, algo parte com eles. Durante o lado sobrenatural do filme, esse vazio é preenchido pela incorporação dos jovens em mulheres que faziam parte de suas vidas. A crença popular é apresentada por esse viés: o corpo daqueles que ficam caminham lado a lado daqueles que partiram. Os espíritos e os corpos vivos compartilham o mesmo mundo, buscando a justiça.
A sociedade patriarcal senegalesa é representada durante o filme. Omar é apresentado como alguém que perpetua os traços de sua cultura, fazendo uso de Ada e sua virgindade como um bem de consumo, algo significativo para sua masculinidade. Ele é um homem de negócios, vive viajando para a Europa e assim, deveria ter uma mulher virgem para se tornar ainda mais sucedido. Acredita-se que a diretora não tem a intenção de construir a imagem de Omar como um vilão desprezível. O personagem, tenta em algumas cenas, agradar Ada com artigos de luxo, o que para ela não tem significado algum. No decorrer do filme, ele é apresentado como um homem inserido em sua sociedade, que não questiona sua cultura e simplesmente a reproduz.
As questões de gênero permeiam as ruas e casas de Dakar. Quando Ada é investigada pela polícia, por seu envolvimento com Souleiman, ela é confrontada pelo seu marido e pai sobre sua virgindade. Omar e sua família impõem que ela faça um exame médico que comprove sua “pureza”, enquanto seu pai culpabiliza sua mãe por não ser responsável o suficiente pela criação de sua filha. É confirmado que Ada ainda é virgem e isso torna-se motivo de comemoração para as duas famílias.
Ao longo do filme, diversas questões denunciam o que ocorre com as mulheres na sociedade senegalesa. Ada é presa pelo inspetor Issa (Amadou Mbow), acusada de envolvimento com Souleiman. Mesmo resistindo e sem provas, ela é mandada para a cadeia. O comissário Cheikh (Abdou Balde), repreende Issa pela prisão, sendo que, Ada era esposa de um homem rico e aquilo não seria bem visto. A jovem sai da cadeia e é levada pelo seu marido. Ela resiste e afirma que não voltaria para a casa. No primeiro momento, Omar afirma que ela é sua mulher e deve ir com ele, mas logo desiste e vai embora. Ada consegue se livrar do marido e busca apoio com sua amiga.
Sobre algumas das personagens encontradas no filme, temos Dior (Nicole Sougou), mulher independente que age contra os casamentos arranjados e é responsável pela boate onde os jovens se reuniam com as garotas. Entre suas características, percebe-se o cuidado e preocupação com Ada e com outras garotas, ao longo do enredo. Ela não demostra interesse pelas tradições islâmicas e vive com camisetas que estampam a bandeira estadunidense, figura emblemática, carregada de características subjetivas e marcadas pelo processo de globalização. Tem consciência sobre os males causados pelo machismo e pelo processo imigratório. Reside em um país assolado pelo colonialismo, porém suas roupas, nome e acessórios remetem aos bens de consumo luxuosos da sociedade ocidental. Ela afirma que “gosta do dinheiro”, mas é a primeira a aconselhar Ada a fugir de seu casamento arranjando.
O final do filme carrega uma beleza poética e estética. Finalmente Souleiman e Ada têm seu encontro romântico na boate de Dior. O jovem, incorporado no corpo do inspetor Issa e Ada, depois de deixar a família e o casamento. A cena final é curta e objetiva com a fala da personagem: “Ada, a quem o futuro pertence!”. Perder sua virgindade trouxe junto sua liberdade e ela agora era uma mulher que não pertencia a nenhum homem, apenas ao futuro. Sua inércia em relação a sua vida foi transformada em vontade de sobreviver e resistir.
CONCLUSÃO
Pode-se caracterizar o filme de Mati Diop como uma produção realizada por alguém que vive entre fronteiras sociais e culturais, de origem francesa e com uma história forjada nas memórias senegalesas. Ela faz isso através de seu longa, levantando questões sociais que lhe incomodaram após seu retorno ao Senegal. A diretora apresenta as ruas de Dakar em segundo plano, mostra a pobreza e a precarização da vida de diversas pessoas, ao mesmo tempo em que mostra a modernidade dos prédios enormes. Com sutileza, apresenta a religião e as crenças daquele lugar.
O filme tem o objetivo de narrar um romance que se transforma em tragédia, com elementos sobrenaturais e permeados por questões sociais. O feminino é abordado em suas entrelinhas, enquanto o machismo é denunciado pela diretora. Suas personagens são as mulheres que ficaram e devem seguir sua vida após a partida de entes queridos. O Atlântico, em seu simbolismo e como personagem, foi capaz de modificar a maneira de viver de Ada e de outras mulheres. O que parece apenas a história de uma jovem, é transformada, em Atlantique, numa história coletiva de sobrevivência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIA
ARMES, Roy. O Cinema africano ao norte e ao sul do Saara. In: MELEIRO, Alessandra (Org.). Cinema no Mundo: indústria, política e mercado. São Paulo: Escrituras, 2007. p. 143-189.
MOULOUD, Mimoun. Atlantique. Hommes & migrations. France, 2020. Disponível em: http://journals.openedition.org/hommesmigrations/10955
Acesso em: 28 de abril de 2020.
TEDESCO, J.C. A imigração senegalesa: dimensões históricas, econômicas e socioambientais. In: GERHARDT, M., NODARI, E.S., and MORETTO, S.P., eds. História ambiental e migrações: diálogos [online]. São Leopoldo: Oikos; editora UFFS, 2017, pp. 237-257.
TELLES, Angela. O Cinema Africano de Osmane Sembène e Djibril Diop Mambéty. In: XX Encontro Regional de História, 20.,2016, Uberaba. Anais. Uberaba, Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), 2016. p. 01-09.
Filmes
Atlantique. Dir. Mati Diop Mambéty. França, Bélgica, Senegal, 2019, cor, 107 min.
Touki Bouki. Dir. Djibril Diop Mambéty. Senegal, 1973, cor, 85 min.
________________________________________________________________________ [1] Graduanda em História pelo ICHPO-UFU.
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